
Feira, feirantes, uma atividade, um eu agora diferente do que era antes...
10/04/2014 14:29"Nada neste mundo é tão poderoso como uma idéia cuja oportunidade chegou." Victor Hugo
Já dizia meu tio avô, depois de velho, para seu aguador na lavoura de arroz: “te preocupa em cuidar e repartir bem as águas nas partes altas, que nas partes baixas eu cuido aqui de casa!”. Ou seja, fora a irônica cobrança, via demonstração do conhecimento de causa, por mais que questionemos a natureza e a vida, as águas, em estado líquido, sempre correrão para o mar e, no estado gasoso, para o ar. Essa é uma lei natural maior. Assim como a célula é a primeira parte viva de qualquer ser vivo, assim como a família é para a comunidade, e assim sucessivamente na formação e reprodução saudável do tecido social, da sociedade. Por vezes esquecemos que isso é a base, e que as demais ações que dão suporte a essa reprodução, são conseqüências. Nisto inclui-se a exagerada e distorcida supremacia dada para questão econômica. Distorcida porque se esquece que tanto o pequeno quanto qualquer comunidade só se viabiliza, do ponto de vista da manutenção e reprodução sustentável, se conseguir manter unidade e coesão do conhecimento, da cultura, do saber e do fazer; em não possuindo ou se apropriando de tais elementos não haverá ambiente harmônico para manutenção e reprodução da coletividade.
Neste sentido é que a recente política do INCRA de fornecer kits feira para os assentados, que ainda não completou dois anos, tem alçado vôo, rápida e quase que autonomamente por todo país. Mas por que isso? Por que uma coisa barata, pequena tem se alastrado tanto? Bom, falar sobre as razões, do ponto de vista de uma explicação científica, mereceria talvez uma consulta multi, inter e transdisciplinar de diversas áreas e profissionais, técnicos e cientistas para tentar explicar a parte visível deste “iceberg”, com suas inúmeras variáveis.
Mas vamos lá! - como na explicação da utilidade da utopia na concepção do escritor Uruguaio Eduardo Galeano, - “caminhar” para tentar instigar a reflexão e o debate.
Tendemos a fazer nossa análise, relativa às feiras, primeiramente apenas pelo viés econômico, o da renda, das condições de atender as necessidades básicas, de uma suposta qualidade de vida do ponto de vista do consumo. Neste sentido, havemos de reconhecer as limitações impostas pelo quantitativo da demanda e a concorrência com as demais redes de oferta de comercialização locais, dentre os quais armazéns, ônibus, caminhões, carroças, etc. que passam de porta em porta nos centros urbanos. Ainda assim, precisamos considerar que as feiras são uma alternativa de renda, isoladas ou concomitantemente a programas como PAA e PNAE. Obviamente que atingem e se restringem inicialmente um número limitado de agricultores, tanto no que concerne às capacidades locais de mercado, quanto a questão referentes ao perfil de agricultor feirante, capacidade e diversidade de produção, regularidade, etc. No entanto, tendemos a esquecer ou não dar a devida importância às demais dimensões que a atividade e o feirante desempenham, sobre as quais gostaríamos, em breves palavras, de instigar reflexão:
1-Relação direta produtor/consumidor;
1.1 Escola de comércio: ao comercializar, existe o processo de negociação em si, preço, trocas de informação sobre o produto, apresentação do produto, atendimento, abordagem do comprador, do vendedor, propaganda, higiene, estética, quantidade, qualidade, embalagem, acondicionamento, diagnóstico, observação, aceitação, necessidade de ajustes, etc;
1.2 Humanização e reciprocidade nas relações: contato pessoal direto, real, personalizado, estabelecimento de vínculos afetivos ao invés de virtuais, aproximação, interação, atualização e trocas entre a cultura rural e urbana (na qual concilia condições de fornecedor e de consumidor), ampliação mútua da visão de mundo, de sustentabilidade, etc;
1.3 Encomendas e novas demandas: consumidor começa a estabelecer relação de confiança, faz encomendas para próximo dia de feira, cria novas demandas, novos produtos, produtos de origem animal, ovos, leite, frangos, produtos industrializados pães, bolachas, embutidos, laticínios, etc;
1.4 Nova dinâmica de trabalho: tais demandas criam novo ritmo de trabalho para que o agricultor feirante consiga cumprir compromissos informais e formais assumidos dando ritmo de trabalho;
1.5 Contágio, efeito dominó: muitas vezes para cumprir com compromissos (o agricultor) precisa contatar e vincular vizinhos e outros agricultores, ampliando a produção e o envolvimento, estabelecendo novas relações, reproduzindo a relações de ritmo de trabalho, de confiança, de parceria;
1.6 Necessidade de aprendizado: o agricultor começa a sentir novas necessidades de aprendizado, tanto de técnicas de produção, quanto de relacionamento econômico e social, de comercialização, de industrialização, de legalização sanitária, etc;
1.7 Politização e Cidadania: o agricultor discute com vizinhos e parceiros demandas de Assistência Técnica e extensão rural, créditos, agroindustrialização, associativismo, cooperativismo, procura instituições públicas e privadas, procura e discerne direitos e deveres, etc
1.8 Construção de comunidade, solidificação de capital social: essa talvez seja uma fase adiantada no processo, na qual já há um ambiente solidificado em todos os aspectos culturais, sociais, econômicos e políticos, que lhes dá ao mesmo tempo autonomia e consciência das cadeias, teias, redes e interações necessárias para projeção em relação ao futuro, ou seja, a noção de quem é/são, onde estão e para onde querem ir, dos condicionantes e do que é necessário para alcance dos objetivos individuais e coletivos;
Por derradeiro, fica a questão do resgate da auto estima, de um público que se sente marginalizado, que convive e carrega a carga preconceituosa de ser um assentado da reforma agrária, que quer e precisa ser incluído, para o qual um simples kit feira, barato, é capaz de conciliar a utilidade, melhoria da renda, com o lúdico, naquilo que todos nós queremos: aceitação, respeito, dignidade e reconhecimento.
Porto Alegre, 03 de abril de 2014.
Decio Machado Monteiro
—————